Post-mortems: healthtechs
Uma necropsia de duas startups de saúde brasileiras
Na área da saúde, fazer o post-mortem de um falecido não é incomum; no empreendedorismo, é tabu. Não deveria ser. Refletir sobre as razões do insucesso de uma empresa é fundamental para o desenvolvimento dos próprios empreendedores e do ecossistema como um todo; mas, evidentemente, falar de fracassos não é algo fácil para qualquer ser humano, não apenas para brasileiros, que não desistem nunca.
The Anatomy Lesson of Dr. Nicolaes Tulp, 1632, Rembrandt
O CBInsights traz os post-mortems de 433 startups neste relatório, que vale a pena conferir. No diagrama abaixo, são apresentadas as principais razões de insucesso das startups. As duas primeiras causas , bastante associadas, revelam o desafio de se encontrar product-market-fit, muitas vezes, com escassez de caixa. Daí a importância tão grande de se ter muito foco e saber, com clareza, quais premissas se quer validar em cada iniciativa.
Neste substack, dois founders em saúde abrem o kimono para falar sobre as healthtechs que fundaram e o que aprenderam em suas jornadas empreendedoras: Evandro Campos, fundador e CEO da Benie (farmácia digital), hoje é investidor de Venture Capital pela Opus, e Rafael Cunha, fundador e CEO da eDoc (ERP da saúde), que passou por consultoria e startups de propaganda e de saúde, e está “working on something new” agora. Muito obrigado pela contribuição, Evandro e Rafa!
Entrevista com Rafael Cunha, da eDoc
Qual era o propósito de sua startup? Conte um pouco sobre ela.
O propósito da eDoc era criar um one-stop shop de saúde no Brasil. Iniciamos atacando o problema de ser muito difícil para um paciente de convênio encontrar um médico. Até hoje, as pessoas pegam o livrinho e ligam para verificar disponibilidade.
Para resolver o problema, fizemos um software para gestão de grandes ambulatórios, com diversas interfaces de agendamento - como agendamento web whitelabel e um app para o paciente
Por que você decidiu empreender em saúde?
Por propósito. Estava trabalhando com advertising, ganhando dinheiro para colocar banners em jogos de celular. Foi um grande aprendizado em termos de tecnologia e escalabilidade, mas rapidamente deixou de cumprir seu propósito. Fui buscar modelos de negócio em saúde ou em educação - saúde me pareceu ter problemas mais tangíveis de serem atacados.
Quais foram os principais erros que você cometeu?
Os principais erros foram as vendas e parcerias com grandes empresas. Depois de iniciar servindo alguém muito maior que a gente, ficamos presos nos problemas dessas corporações, sem conseguir iterar rápido para o nosso modelo de negócios. Também ficamos presos em uma parceria com uma empresa tradicional de saúde ocupacional que levou mais de um ano para iniciar uma integração conosco. Foram decisões que geraram clientes iniciais, mas que nos prenderam no ICP errado.
Olhando para trás, quais conselhos você daria para você mesmo no Dia Zero?
O principal conselho que daria seria para entender melhor as interfaces do ecossistema de saúde para criar soluções pequenas e modulares. Quem empreende em saúde enfrenta a mesma dificuldade: as jornadas dos pacientes são interligadas. Ao se responsabilizar por uma jornada, seu cliente demandará cobertura nas outras. Sem saber claramente onde estão as interfaces e como elas se comunicam, você morrerá sem caixa, ainda que crie um produto excelente.
Por exemplo, é impossível fazer agendamentos de convênio sem saber qual o contrato financeiro entre o prestador e a operadora, pois dependendo dos planos e procedimentos, serão necessárias autorizações, senhas, etc.
Essas autorizações são essenciais para a recepção de um paciente e emissão da guia. A guia é essencial para a criação de um lote. O lote é o início do DRE e das notas fiscais emitidas.
Ao olhar para essa jornada, você tem que resolver agendamento, recepção, faturamento e contábil - não há tempo, mão de obra nem caixa para fazer tudo isso.
E, lembre-se, grandes players de saúde não trabalham com sistemas on-line e APIs para que essas jornadas sejam integráveis.
Para uma healthtech, na sua opinião, quais são os principais KPIs a serem acompanhados?
Claro que depende muito do modelo. Em algo B2B, o mais relevante é um CAC muito claro, especialmente metrificando o tempo de negociação para fechamento de um deal e o custo de implantação.
No B2C eu focaria em taxa de engajamento, já que MAUs não são um bom reflexo de um cliente recorrente em saúde.
Onde estão as principais avenidas de oportunidade em healthcare?
Soluções on top do protocolo TISS parecem ter interfaces bem definidas e com oportunidades de entrada - eu olharia para desperdício em materiais cirúrgicos, segunda opinião estruturada de procedimentos ou identificação de padrões de fraude.
Também acredito haver oportunidades em modelos verticalizados, ou na terceirização de verticalização com modelos de capitation. Saúde corporativa/ocupacional também mostram boas interfaces para empreender.
Como foi a decisão de fechar a empresa?
Perceberam que não o produto não tinha market fit, e viram que tinham testado as hipóteses que queriam. Virar a chave, nesse caso, foi muito racional. O Florian, da Loft, dizia: a virtude e o problema do brasileiro são que ele nunca desiste. Dinheiro de Venture Capital é para isso mesmo, não tem que ter arrependimentos.
Qual mensagem final você daria para pessoas que querem empreender em saúde?
Resista ao máximo englobar novas jornadas. Tente manter seu produto pequeno, com uma proposta de valor muito forte para este target. Todos vão tentar dissuadi-lo de fazer isso, mas lembre que este pode ser um dos motivos de não termos startups gigantes de saúde.
Entrevista com Evandro Campos, da Benie
Por que você decidiu empreender em saúde?
A ideia de montar a BENIE surgiu da percepção de que a experiência da farmácia é caótica. O atendimento é completamente desconectado da necessidade do paciente, nada expressa isso melhor que aquele slip de promoções oferecido ao informar o CPF. Mas além da distância e da impessoalidade, ainda sofremos com a demora no atendimento, falta de produtos e preços confusos.
Tanto faz se a pessoa vai comprar um creme para rugas ou um remédio para se cuidar de uma doença, a superficialidade no atendimento é a mesma.
Eu cheguei a ser surpreendido ao chegar à farmácia em que sempre comprava meu remédio para controle da síndrome de Hashimoto, e ser informado que o medicamento tinha saído de fabricação. Mesmo tendo comprado nessa mesma loja uma promoção de 4 caixas pelo preço de 3, meses antes, não fui informado durante esse período que o produto tinha sido descontinuado. Como a farmácia em que sempre comprei meus medicamentos, que tem todos os meus dados, foi incapaz de me avisar que isso estava acontecendo? Simples, ela ignora o paciente por trás do cliente. Essa percepção foi decisiva para criar a BENIE.
Qual era o propósito de sua startup? Conte um pouco sobre ela.
A BENIE tinha como missão desenvolver um serviço digital de farmácia que trazia uma visão sobre o paciente, e não sobre o cliente. Essa pessoa que está por trás da compra de farmácia no seu dia a dia, muitas vezes, esconde uma fragilidade grande na sua saúde e não pode ficar sem seu medicamento.
O modelo tradicional de farmácia, apesar de todos os esforços dos participantes, não responde a esse cenário, pois é totalmente focado no atendimento presencial espalhado por mais de 85k pontos de venda, que oferece uma disponibilidade parcial de produtos, e em que a prioridade, por motivos claros, é a oferta de produtos de maior liquidez e maior margem.
Esse olhar sobre o paciente era calcado em três pilares: preço, disponibilidade e atenção farmacêutica. Os três combinados traziam de volta a importância da vida do paciente, tema que a farmácia deixou de considerar em sua busca de expansão geográfica das grandes redes.
Quais foram os principais erros que você cometeu?
Inicialmente, o maior problema foi desenhar uma solução baseada em um modelo de marketplace que permitia que a BENIE se conectasse às farmácias de bairro. Decidimos desenvolver esse processo sem integrar com os PDVs das farmácias, por acreditar que isso seria mais rápido de ser validado.
Ficou claro de imediato que tínhamos 2 desafios principais: operação e monetização.
O desafio de monetizar o negócio com base em um acordo de rebates entre a BENIE e as farmácias, em um mercado com margens apertadas, foi a primeira grande dor. Por mais eficiente que fôssemos, era muito difícil uma operação de venda de produtos gerar tráfego suficiente para monetizar a operação, mesmo em 2017, quando as farmácias não tinham praticamente nenhum interesse pelo canal digital e a BENIE complementava essa oferta, sem investimento prévio das farmácias. O que ficou claro é que só oferecer o canal digital conectando as partes, oferecendo uma busca por disponibilidade do medicamento, não era suficiente para engajar as farmácias e nem os consumidores.
Outro desafio, na oferta, foi o lado operacional: ao delegar a operação a farmácias, a experiência que oferecíamos era muito semelhante à venda por telefone ou WhatsApp. O que ficava distante do nosso objetivo, e não gerava nenhum gatilho para o público consumidor mudar de canal e se engajar em nossa proposta.
Aos poucos, o problema operacional ganhou importância, e entendemos que, se assumíssemos o papel da farmácia nas tarefas de separação, empacotamento e entrega, a oferta ficava mais interessante. Com isso avançamos sobre a operação da farmácia, que passou a funcionar somente como depósitos de medicamentos. Recebíamos o pedido do cliente, comprávamos os produtos nas farmácias, organizávamos e empacotávamos os pedidos e, finalmente, fazíamos a entrega. O problema diabólico desse modelo era que esse negócio, quando assumíamos boa parte do custo da operação, tinha margem bruta negativa.
Além dos problemas operacionais e de monetização, ficou claro que o nível de ruptura de vendas cresceria com o crescimento da BENIE. Ou seja, nosso modelo estava potencializando a limitação do modelo existente. Ou seja, apesar de ter a oferta robusta e encantadora de um serviço premium, não mudaríamos o risco de ruptura e o pior, o negócio se mostrava inviável economicamente. Para que funcionasse, precisávamos nos tornar uma farmácia, acessar a margem que ficava com a farmácia de bairro, quando ela comprava dos distribuidores.
Com isso mudamos o modelo para uma operação com estoque próprio (1P), ou seja, abrimos uma farmácia, na verdade uma Dark Pharmacy, e passamos a contar com os distribuidores e com acesso a uma relação muito maior de produtos. De imediato, a ruptura despencou, a margem bruta ficou positiva e todo controle da operação ficou com a BENIE. Operávamos integrados aos maiores distribuidores do mercado, tornando o suprimento de produto um aliado à nossa expansão, com disponibilidade do medicamento que nosso paciente necessitava, sem sustos ou interrupção de fornecimento.
O desafio passou a ser financiar a expansão do WORKING CAPITAL, e ainda ter capital para investir na expansão do negócio para outras localidades. Mas acredito que esses desafios são inerentes à trajetória de descobrimento e evolução de um novo negócio. O aspecto que acredito ter demorado mais para dimensionar, talvez preso ao modelo atual da operação, foi não definir claramente onde encontrava meu cliente e o que venderia para ele.
A premissa que o paciente estava na farmácia, apesar de ser uma visão correta, só levaria a BENIE a ser uma operação de farmácia sem loja, o que não era o que almejávamos, e, o pior, nos colocaria em concorrência direta com as operações de farmácia, que, nesse momento, já tinha um canal digital estabelecido. Deveríamos ter nosso olhar voltado à consulta médica, onde de fato teríamos muito mais oportunidade de ter transformado toda a jornada de farmácia para as pessoas.
Outro ponto importante foram os absolutismos dos modelos, ora Marketplace (3P) ora estoque próprio (1P). O ideal seria ter um modelo híbrido, focando nos medicamentos necessários para atender o paciente (1P) e deixando com as farmácias os produtos que ele também consumia, mas não impactava no seu tratamento, como higiene pessoal, cosméticos, etc. (3P).
Olhando para trás, quais conselhos você daria para você mesmo no Dia Zero?
Eu diria que o mais importante é manter o foco. Concentre todo seu esforço em quem você quer atender e enderece o valor que quer entregar desde o início. Potencialize o que torna sua proposta diferente, na verdade especial, e deixe para o mercado o que você não vai fazer. Eu tenho certeza de que o ajuste no posicionamento da proposta, trazendo a dispensação para mais próximo da consulta médica, teria feito a diferença em nossa operação.
O que a vida empreendedora ensinou para o Evandro investidor?
Empreender é perseguir uma visão. Isso nos treina a olhar o mundo com os olhos e ouvidos bem abertos, e o primeiro passo para mim, ao avaliar novos projetos, é entendê-los sob a visão de quem está empreendendo, e não com base em sinapses referidas pela minha própria experiência.
Esse passo é importante para entender como o meu investimento ajudará esse empreendedor nessa jornada. Não se trata somente de capital.
Nessa busca por conhecer a pessoa por trás do projeto, avalio se essas pessoas já tiveram a chance na vida de provar sua resiliência diante dos problemas que com certeza terão que vencer, se têm o preparo necessário para desenvolver a ideia, a habilidade de engajar outras pessoas no seu projeto e, principalmente, a coragem de ajustar o que não está funcionando, sendo capaz de ouvir e construir novas verdades com visões complementares às suas.
A OPUS olha para negócios de saúde? Em quais temas têm interesse?
A OPUS, na área de Venture Capital, para tornar a oferta tangível para os empreendedores, organizou uma operação que foca em empresas não financeiras que têm o potencial de obter receitas financeiras. Isso envolve diversos setores onde podemos contribuir com uma longa experiência em operações financeiras, ajudando os empreendedores com vários aspectos do produto, além do network e acesso aos maiores players do mercado.
Olhamos empresas em estágio inicial (Seed e Series A), estágios em que essa colaboração representa uma grande ajuda.
Como foi o processo para decidir desligar as operações da Benie?
Essa foi a parte mais difícil. Até mesmo para um empreendedor, um otimista por natureza, esse momento é definitivo, e mesmo com crescimento mensal persistente, novos canais de vendas estabelecidos (B2B), e vários ajustes na estrutura com diminuição de time e de mix de produtos, ficou claro quando todas as opções de financiamento da operação se esgotaram. Não tínhamos mais o que fazer, a não ser parar.
Para uma healthtech, na sua opinião, quais são os principais KPIs a serem acompanhados?
Acredito que, de uma forma geral, qualquer operação precisa entender como cresce sua receita e sua lucratividade. Não interessa o que se propõe a desenvolver, e em saúde, isso não é diferente.
Do ponto de vista central, sempre entendi que a BENIE deveria olhar para indicadores de Customer Loyalty.
- Net Promoter Score (NPS)
- Customer Retention Rate (CRR)
- Repeat Purchase Rate/Net Retention Rate (NRR)
- Customer Lifetime Value
- Customer Churn Rate
- Upselling Ratio
Onde estão as principais avenidas de oportunidade em healthcare?
Existe um universo imenso de oportunidades em Healthcare no Brasil, mas uma parte que se torna mais evidente para mim são operações focadas no Cuidado ao Paciente. Nessa linha, já temos empresas especializadas em atendimento a um grupo de patologias (digital therapy), e temos empresas que focam em linhas de cuidados preventivos.
Quanto mais próximo do paciente estiver o valor central da proposta, maior o valor construído por essa startup.
Qual mensagem final você daria para pessoas que querem empreender em saúde?
Empreender, para mim, é um ato de dar forma às ideias que muitas vezes só você está vendo. Isso demanda coragem e desprendimento. Tem uma frase de Napoleão Bonaparte, uma das pessoas mais conhecidas da nossa história, tanto pelas conquistas como pelas derrotas, que expressa meu sentimento sobre empreender:
“Courage isn't having the strength to go on - it is going on when you don't have strength.”
Empreender é duro. E eventualmente a única coisa que você terá além da solidão, é sua força de ir em frente.
Em saúde, o desafio é grande. A proposta de melhorar o cuidado da pessoa é por si só desafiador, mas é muito potencializado em um mercado consolidado e com forte presença do poder público.
Napoleon Crossing the Alps, Jacques Louis-Davis, 1801
PS: this content was not translated into English. If you are interested in it, please let me know.





